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21 de agosto de 2025
A inteligência nada artificial de Marisa Maiô
Quando a criatividade encontra a memória e ativa o repertório de uma geração

Estava rolando o feed do reels no Instagram quando fui surpreendida por um programa de auditório digno de Silvio Santos e Casos de Família — tudo ao mesmo tempo. As cores saturadas, os cortes secos, as piadas afiadas e um certo saudosismo capturaram minha atenção logo na primeira cena. Era como tropeçar em uma produção televisiva da década de 90, daquelas que se assiste meio constrangido, meio hipnotizado. Pensei: “Que programa é esse que nunca vi?”. Não era TV, era Marisa Maiô.
O fato é que não tenho televisão em casa há pelo menos cinco anos. Trabalho com inteligência artificial diariamente, estudo o tema academicamente — meu trabalho de conclusão de curso foi sobre IA — e uso ferramentas generativas no meu dia a dia, desde antes de o ChatGPT ganhar fama. Mesmo assim, fui pega de surpresa. No primeiro instante, achei que estava diante de um programa de auditório real, daqueles que passam na TV aberta e que, por alguma razão, eu nunca tinha visto antes.
Pensei até: “Será que estou tão por fora assim? Preciso procurar depois se esse programa está passando na TV”. Só depois de parar para observar com mais calma, reparar nos detalhes e ler os comentários a ficha caiu: tudo aquilo foi criado com inteligência artificial. Se isso já confundiu quem convive diariamente com essas ferramentas, imagine para quem não tem esse repertório técnico ou contato frequente com o assunto.
Marisa Maiô é criação do ilustrador e ator carioca Raony Phillips, também responsável por “Girls in the House” — série pioneira que, anos atrás, já mostrava o potencial de narrativas digitais produzidas com poucos recursos e muito repertório. Mas dessa vez ele foi além: idealizou um programa de auditório completo usando a tecnologia Veo 3, do Google, capaz de gerar vídeos altamente realistas. O salto é significativo.
Se em “Girls in the House” a linguagem do “The Sims” servia como base para um humor infame e cheio de crítica social, em “Marisa Maiô”, Raony leva esse espírito para outro patamar — mais ambicioso, mais experimental, mais estranho também — ainda assim, tudo ali tem identidade. Para contextualizar: lançado em 2000 pela Electronic Arts, o jogo de simulação “The Sims” serviu como ponto de partida estético para Phillips, que buscou nele inspiração para moldar tanto os personagens quanto as situações do dia a dia retratadas na série.
A estética, o ritmo, o humor — nada soa genérico ou automatizado. Ao contrário: há algo profundamente humano. Se reparar com calma, é absurdo demais — no melhor sentido. As piadas, o timing dos cortes, a maneira como os personagens se comportam, as situações surreais: tudo é tão caótico quanto calculado. Sim, há momentos em que as falas soam mecanizadas, a dublagem tem aquela dissonância quase robótica, e os personagens parecem sempre gravados em um mesmo plano fixo, com mudanças de cenário que acontecem sem muita lógica espacial. Ainda assim, nada disso tira a força da experiência — ao contrário, tudo contribui para uma estética própria, quase hipnótica, que mistura o artificial e o familiar.
Em certos momentos, é impossível não lembrar do universo de “GTA” (o videogame), com suas reações desproporcionais e personagens vagando de forma mecânica. Ou então dos vídeos virais em que pessoas imitam NPCs (non-playable characters, os figurantes dos jogos), com movimentos repetitivos, olhares vazios e falas ensaiadas que beiram o nonsense. “Marisa Maiô” se aproxima dessa lógica com precisão: os pequenos absurdos, a “quase-realidade” e a leve dissonância criam uma sensação de que aquilo poderia ser de verdade — mas não é. E talvez seja exatamente por isso que funcione tão bem.
O perfil oficial de “Marisa Maiô” no Instagram (@marisamaiooficial) já acumula mais de 200 mil seguidores, mesmo com pouquíssimas publicações. A viralização foi instantânea — cortesia do algoritmo que foi sustentada pelo conteúdo. Já o canal de Raony no YouTube, Rao TV, onde ele publica suas séries autorais, soma mais de 2,5 milhões de inscritos e 170 vídeos — muitos deles com milhões de visualizações, especialmente os episódios de “Girls in the House”. Ou seja: não se trata de um acaso digital, mas de um autor que entende profundamente o meio onde está inserido — e sabe como dobrá-lo a favor da narrativa.
A IA não substitui a criatividade, ela a revela. Raony é um exemplo de alguém que, com repertório sólido e domínio criativo, encontrou nas ferramentas digitais um meio de expressão. A inteligência artificial, nesse contexto, não toma o lugar do criador — viabiliza o que, até então, parecia inviável: produzir um programa inteiro em poucos dias, sem câmera, sem elenco, sem estúdio. A IA funciona aqui como extensão da imaginação, não como atalho para o improviso.
Muito se discute sobre autoria e originalidade em tempos de automação criativa. Mas o que torna Marisa Maiô singular não é a IA em si, e sim o que foi feito com ela. A ferramenta potencializou aquilo que já existia: observação, timing, crítica social e sensibilidade estética. Nada disso se produz com código. Isso vem de repertório, e repertório vem da experiência.
Essa constatação leva inevitavelmente a uma conexão com o pensamento de Vilém Flusser. Quase quatro décadas atrás, em 1989, o filósofo escreveu, em Berlim, o ensaio “Memories”, que discutia como os avanços tecnológicos — especialmente os relacionados à memória — transformariam nossa forma de pensar, criar e agir.
Flusser, nascido na antiga Tchecoslováquia e naturalizado brasileiro, viveu grande parte de sua vida no Brasil, onde produziu uma obra marcante sobre comunicação e tecnologia. Pesquiso sua obra há mais de um ano, inclusive em meu TCC, justamente pela relevância que ela tem hoje: ele antecipou a transição da memória cultural para a memória eletrônica e os efeitos disso sobre a criatividade e o consumo.
Não é à toa que a inteligência artificial vem ocupando um espaço cada vez maior no cotidiano — inclusive no marketing, onde vem sendo utilizada para segmentação de públicos, personalização de campanhas e análise preditiva de comportamento. De acordo com relatório setorial da Research and Markets, divulgado pela GlobeNewswire (2024), o mercado global de IA em marketing deve crescer de US$ 41,9 bilhões em 2023 para mais de US$ 220 bilhões até 2030, com taxa de crescimento anual de 26,7 %.
No ambiente corporativo, esse avanço é visível: além do uso da IA generativa, têm-se ampliado os investimentos em treinamentos voltados a agentes inteligentes especializados, integrados a rotinas de negócios e estratégias de inovação. O cenário indica que essas soluções estarão cada vez mais presentes no cotidiano de empresas que buscam diferenciação competitiva.
Capacidade crítica ampliada
Segundo Flusser, o deslocamento da memória cultural para a eletrônica teria dois efeitos centrais: (1) o aprimoramento da capacidade de armazenar e compartilhar dados; e (2) a capacidade crítica ampliada, ao simular funções mentais fora do corpo humano e, com isso, questioná-las. Para Flusser, ao deixarmos de memorizar fatos, poderíamos nos dedicar à manipulação criativa dos dados — à estrutura, e não apenas ao conteúdo. Isso abriria caminho para uma nova era de criatividade ampliada. A IA, hoje, parece realizar essa previsão com precisão surpreendente.
Flusser encerra seu ensaio lembrando que todas aquelas ideias eram apenas previsões, mas há algo incrivelmente lúcido em sua análise. A inteligência artificial não ameaça a criatividade humana — ao contrário, coloca em evidência sua origem e sua importância.
O avanço tecnológico não cria por conta própria, mas abre espaço para criações antes inviáveis. É plausível imaginar que “Marisa Maiô” jamais teria existido sem acesso a esses recursos. Em outro momento histórico, a ideia poderia ter permanecido apenas no campo da imaginação ou esbarrado em limitações logísticas, técnicas e financeiras.
Não é a IA que cria. Somos nós. Mas agora, com mais ferramentas, mais repertório acessível e mais caminhos possíveis para a invenção. A grande transformação não está nas máquinas em si, mas no espelho que elas nos devolvem sobre quem somos e quem ainda podemos nos tornar.
Quem publicou esta coluna
Natasha Barreto de Oliveira




























